1  Introdução

O fenômeno da judicialização da política constitui uma das características mais marcantes e debatidas das democracias contemporâneas. No Brasil, a promulgação da Constituição Federal de 1988 estabeleceu um terreno institucional fértil para a sua proliferação, ao consagrar um extenso rol de direitos fundamentais e, simultaneamente, instituir um sistema multifacetado de controle de constitucionalidade. Longe de ser uma anomalia ou uma patologia institucional, a judicialização consolidou-se como um traço estrutural da Nova República, impulsionada por um conjunto de “condições facilitadoras”, como a existência de uma política de direitos e a percepção de ineficácia de outras instituições, e por dinâmicas de fragmentação do poder político que, ao gerarem impasses decisórios, criam um vácuo que o Judiciário é chamado a preencher. Esta dissertação parte da premissa de que, para compreender a governança no Brasil atual, é imperativo analisar não apenas os processos eleitorais e legislativos, mas também as estratégias e os resultados das disputas travadas nos tribunais, que se converteram em um espaço central para a formulação de políticas públicas e para a própria definição das regras do jogo democrático.

No epicentro deste fenômeno encontra-se o Supremo Tribunal Federal (STF), instituição que transcendeu sua função jurídica tradicional para se converter em uma arena política de primeira ordem. A metáfora que o descreve como a “rainha do jogo de xadrez” da política brasileira capta com precisão sua capacidade de influenciar e, por vezes, determinar os rumos dos mais relevantes debates nacionais. A centralidade do STF não é um dado estático, mas o resultado de uma dinâmica de retroalimentação: a fragmentação partidária e a polarização política geram conflitos que o sistema representativo se mostra incapaz de solucionar, impelindo os atores a buscarem no Judiciário um árbitro para suas controvérsias. Por sua vez, ao proferir decisões de grande impacto político, a Corte reforça sua própria relevância e se torna um palco ainda mais atrativo para disputas futuras, em um ciclo que amplifica seu poder e sua visibilidade. O STF, portanto, não atua em um vácuo; ele é parte integrante de um ecossistema político complexo, no qual sua autoridade é simultaneamente causa e consequência das tensões e dos impasses que caracterizam a democracia brasileira.

Dentre os diversos instrumentos processuais que canalizam a judicialização da política para o Supremo Tribunal Federal, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) assume um protagonismo singular. Concebida pela Constituição de 1988 e regulamentada pela Lei nº 9.882/1999, a ADPF se distingue por sua notável flexibilidade e pelo seu vasto escopo, que abrange qualquer “ato do Poder Público” capaz de lesionar um preceito fundamental, incluindo leis municipais e o direito pré-constitucional, hipóteses não alcançadas por outras ações de controle concentrado. A força política deste instrumento reside, paradoxalmente, em sua ambiguidade conceitual. A “indeterminação” do que constitui um “preceito fundamental” e a interpretação flexível do requisito de subsidiariedade – que veda a ação quando houver “outro meio eficaz” para sanar a lesividade – conferem ao STF uma ampla margem de discricionariedade para decidir quais casos admitir e quais rejeitar. Esse poder de gatekeeping, ou controle de acesso, transforma o que seria uma análise puramente processual em um ato de profundo significado político, permitindo à Corte gerenciar sua pauta e modular sua intervenção nos assuntos mais sensíveis da República.

A dissertação delimita seu foco temporal ao período compreendido entre 2014 e 2024, uma década marcada por um nível excepcional de estresse institucional e por uma sucessão de crises que redefiniram o cenário político brasileiro. Este intervalo abrange eventos de ruptura, como a Operação Lava Jato, o processo de impeachment da ex-Presidente Dilma Rousseff, a ascensão de um governo de matriz populista autoritária e a crise sanitária, social e política desencadeada pela pandemia de COVID-19. Tais eventos não apenas intensificaram a polarização e a fragmentação do sistema político, mas também atuaram como potentes aceleradores do fenômeno da judicialização. Em um contexto de paralisia decisória e de conflitos agudos entre os Poderes, os atores políticos e sociais recorreram ao Supremo Tribunal Federal de forma sistemática, demandando que a Corte atuasse não apenas como guardiã da Constituição, mas como árbitra de disputas sobre a condução de políticas públicas, gestora de crises e, em última instância, definidora das próprias regras do embate político. A escolha deste período se justifica, portanto, por sua natureza de “momento crítico”, no qual o papel do STF foi fundamentalmente testado, expandido e contestado.

Desde a sua regulamentação, foram ajuizadas 1.217 Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental, mas é na última década que seu uso explode, com um crescimento vertiginoso que atinge o ápice em 2021, ano em que mais de 150 novas ações foram protocoladas no STF. Este surto de litigância não é um dado aleatório, mas um reflexo direto da conjuntura política. Mais revelador ainda é o perfil dos atores que protagonizam essa corrida aos tribunais. A análise quantitativa demonstra que os partidos políticos se consolidaram como os principais proponentes de ADPFs, ultrapassando todos os outros legitimados. Este dado aponta para uma mudança qualitativa no controle de constitucionalidade, que pode ser descrita como a “partidarização” da jurisdição constitucional. A ADPF converteu-se em uma ferramenta primária da oposição partidária, um instrumento estratégico para a contestação de políticas governamentais e para a obtenção de visibilidade em um ambiente político cada vez mais conflagrado.

Diante da complexidade e da escala deste fenômeno, uma análise puramente dogmática, focada na interpretação de textos normativos e decisões isoladas, mostra-se metodologicamente insuficiente para capturar a dinâmica real da atuação do Supremo Tribunal Federal. A compreensão do “ser” do direito, ou seja, de como as instituições jurídicas operam na prática, demanda a adoção de novas ferramentas analíticas. Esta dissertação, portanto, filia-se ao campo da jurimetria, que propõe a aplicação de métodos quantitativos e estatísticos ao estudo do direito. A opção por uma abordagem multimétodo, que combina análise exploratória de dados, a análise de sobrevivência, a análise de correspondência e a classificação hierárquica descendente com a análise qualitativa, não representa uma negação da tradição jurídica, mas uma expansão de seu arsenal investigativo. É por meio desta lente metodológica que se torna possível desvelar padrões ocultos, testar hipóteses com base em evidências e compreender a operacionalização da ADPF em sua multidimensionalidade, revelando dinâmicas como o “paradoxo do rito abreviado” ou a existência de uma “triagem judicial”, que permaneceriam invisíveis a uma abordagem estritamente tradicional.

A presente investigação parte de um problema de pesquisa central, que orienta toda a sua estrutura analítica: busca-se compreender a forma como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental é operacionalizada no campo do processo no Supremo Tribunal Federal a fim de judicializar a política. O termo “operacionalizada” é aqui empregado em seu sentido mais amplo, transcendendo a mera descrição das regras formais que regem o instrumento. O foco reside na prática concreta e estratégica do uso da ADPF, tanto pelos atores políticos que a manejam como ferramenta de disputa, quanto pelo próprio Tribunal, que, ao interpretar e aplicar os requisitos processuais, molda ativamente o escopo e o impacto da judicialização. Trata-se, portanto, de investigar a ADPF não como um instituto jurídico abstrato, mas como uma arena viva, na qual se desenrolam interações complexas entre direito e poder, e cujas dinâmicas revelam as tensões e os arranjos institucionais da democracia brasileira contemporânea.

O objetivo geral consiste em analisar a operacionalização da ADPF como vetor da judicialização da política no Brasil entre 2014 e 2024. Para alcançá-lo, foram traçados três objetivos específicos, que correspondem às etapas metodológicas do trabalho. O primeiro é realizar uma revisão narrativa da literatura sobre judicialização da política, constitucionalismo democrático e diálogos institucionais, a fim de construir um referencial teórico de base. O segundo objetivo é proceder à coleta, ao tratamento e à análise quantitativa de um banco de dados, contendo todas as ADPFs ajuizadas no período delimitado. Por fim, o terceiro objetivo é empregar técnicas de análise de conteúdo automatizada para analisar o discurso das decisões judiciais e inferir as lógicas subjacentes à atuação do STF ao lidar com as demandas.

Para fundamentar a análise destes fenômenos, a dissertação mobiliza um arcabouço teórico multifacetado, que dialoga com a literatura internacional e nacional sobre a judicialização da política. A investigação parte dos conceitos seminais de Tate e Vallinder, que distinguem a judicialização “de fora” (transferência de poder para as cortes) da judicialização “de dentro” (adoção de métodos judiciais por outros órgãos). Em seguida, incorpora a perspectiva crítica de Ran Hirschl e sua “tese da preservação hegemônica”, que interpreta a expansão do poder judicial como uma estratégia de elites políticas e econômicas para isolar suas preferências do processo democrático majoritário. Adicionalmente, a “hipótese da fragmentação” de John Ferejohn é utilizada para explicar como a incapacidade das instituições políticas de agirem de forma coesa cria as condições estruturais para a ascensão do poder judicial. Este conjunto de teorias oferece as lentes analíticas para interpretar os dados empíricos e situar o caso brasileiro em um debate comparado mais amplo.

Para além do diagnóstico empírico, a pesquisa se debruça sobre a dimensão normativa do fenômeno, ancorando-se na teoria do constitucionalismo democrático. Este referencial teórico busca conciliar a aparente tensão entre o constitucionalismo (que prega a limitação do poder por meio de uma Carta de direitos) e a democracia (que se baseia no princípio majoritário). A chamada “dificuldade contramajoritária”, articulada por Alexander Bickel para questionar a legitimidade de juízes não eleitos invalidarem atos de representantes do povo, é aqui ressignificada. Com base em autores como John Ferejohn e Pasquale Pasquino, a atuação contramajoritária da corte é vista não como um obstáculo, mas como uma “oportunidade” para aprofundar a deliberação pública. Ao vetar uma decisão majoritária, o tribunal pode iniciar um “colóquio socrático” com os demais Poderes e com a sociedade, forçando a revisitação de argumentos e a busca por um consenso mais robusto e alinhado aos valores constitucionais. O diálogo institucional emerge, assim, como um mecanismo de legitimação da própria jurisdição constitucional.

A estrutura desta dissertação foi concebida para construir o argumento de forma progressiva e sistemática, partindo dos fundamentos metodológicos e teóricos para, em seguida, explorar a análise dos dados.

O Capítulo 2 é dedicado à exposição da metodologia da pesquisa. Nele, justifica-se a escolha por uma abordagem jurimétrica e multimétodo, que articula técnicas quantitativas e qualitativas. São apresentadas as ferramentas estatísticas e computacionais que formam a espinha dorsal da análise.

O Capítulo 3 constrói o alicerce conceitual da investigação. Por meio de uma revisão narrativa da literatura, o capítulo mapeia o terreno teórico sobre o qual a análise empírica será edificada. São explorados os diferentes sentidos e dimensões do conceito de “judicialização da política”. Em seguida, o capítulo aprofunda a discussão sobre o constitucionalismo democrático, abordando a tensão inerente entre a supremacia da Constituição e o princípio majoritário. Por fim, examina-se o conceito de “diálogo institucional” como um modelo teórico para pensar a legitimidade da atuação das cortes constitucionais em regimes democráticos, fornecendo as ferramentas conceituais indispensáveis para a interpretação dos dados apresentados nos capítulos subsequentes.

O Capítulo 4 oferece um panorama quantitativo do objeto de estudo. Este capítulo apresenta e analisa os dados sobre a evolução do ajuizamento de ADPFs, com foco no período de 2014 a 2024, contextualizando o crescimento exponencial do uso do instrumento em face das crises políticas do período.

O Capítulo 5, constitui o núcleo analítico da dissertação. Este capítulo realiza um mergulho na utilização da ADPF pelos partidos políticos, identificando os principais litigantes, seus alvos prioritários e as motivações estratégicas que guiam sua atuação.

A análise dos dados permite extrair conclusões que transcendem a mera descrição, revelando a lógica estratégica que governa a atuação do Supremo Tribunal Federal. Em suma, esta dissertação oferece uma contribuição multifacetada para o estudo do direito e da política no Brasil. Do ponto de vista empírico, apresenta um diagnóstico sobre a operacionalização da ADPF, mapeando seus atores, temas e dinâmicas temporais em uma década de profunda transformação. Do ponto de vista metodológico, demonstra o potencial de abordagens jurimétricas e computacionais para desvelar padrões e estratégias que escapam à análise tradicional, propondo um novo paradigma para a pesquisa jurídica. Finalmente, do ponto de vista teórico, oferece uma interpretação do comportamento estratégico do STF, compreendendo-o não como um legislador ativista irrefreável, mas como um árbitro seletivo e poderoso que gerencia ativamente seu papel no complexo jogo da democracia brasileira.