3  Um olhar para a(s) judicialização(ões) da política

A judicialização da política carrega consigo uma disputa de sentidos. Ainda que se aponte que foi originalmente proposta por Neal Tate e Torbjörn Vallinder (1995), o seu escopo ainda não encontra consenso na literatura. A proposta deste capítulo é apresentar o que literatura compreende por judicialização da política, não apenas como designação teórica, mas também suas implicações.

Diretamente, Vallinder, seguido por Tate, definem judicialização da política a partir de dois pontos centrais: expansão da competência de juízes e tribunais que passam a tomar decisões sobre políticas públicas e transformação de espaços não-judiciais em espaços quase-judiciais:

Thus the judicialization of politics should normally mean either (1) the expansion of the province of the courts or the judges at the expense of the politicians and/or the administrators, that is, the transfer of decisionmaking rights from the legislature, the cabinet, or the civil service to the courts or, at least, (2) the spread of judicial decision-making methods outside the judicial province proper. In summing up we might say that judicialization essentially involves turning something into a form of judicial process (Tate; Vallinder, 1995, p. 24).

A expansão das competências dos juízes e tribunais é definida como judicialização de fora, ou na expressão utilizada pelos autores “judicialization from without”, isso pois implica em uma transferência de direitos de tomada de decisão do poder legislativo e executivo para os tribunais, trata-se de uma expansão da competência do judiciário em detrimento do legislativo e executivo. Nota que o judicial review é a principal forma de judicialização de fora, meio pelo qual o judiciário é instado a declarar nula ou anular leis ou atos normativos inconstitucionais. Na perspectiva de Vallinder, a judicialização de fora pode significar a valorização do princípio da proteção dos direitos fundamentais em detrimento de uma vontade da maioria, isto é:

It is nevertheless quite clear that the two models embody two different principles and two corresponding roles, both of which are indispensable in a democracy. Quoting Herbert Wechsler, we should put “emphasis upon the role of reason and of principle in the judicial, as distinguished from the legislative or executive, appraisal of conflicting values” (Wechsler 1959-1960, 16). In this connection it is the task of the courts to shelter the fundamental rights of citizens, what we, following Isaiah Berlin, call “negative” freedom. The legislature, on the other hand, has to take care of the rights and obligations of the (legislative) majority. The judicialization of politics may roughly be said to signify upgrading the first principle at the expense of the second (Tate; Vallinder, 1995, p. 26).

Doutro lado, a judicialização de dentro, ou “judicialization from within” é forma pela qual os procedimentos judiciais passam a ser aplicados em processos não judiciais, por não envolver a intervenção do judiciário, mas a adoção pelo legislativo e executivo de práticas e métodos de funcionamento inspirados em órgãos judiciais. A ideia de uma instância “legalística” pode demonstrar uma necessidade de “despolitizar” conflitos, ou ainda minimizar a revisão judicial a partir de uma “fachada de formalidade”. Em outras palavras, há a infiltração de normas, procedimentos e métodos de raciocínio tipicamente judiciais dentro de órgãos e processos que tradicionalmente operavam de maneira mais informal, discricionária ou politicamente orientada (Tate; Vallinder, 1995).

Para além de um simples fenômeno casuístico, a judicialização da política é um processo impulsionado por condições facilitadoras que criam um ambiente propício para que os tribunais ou métodos judiciais se tornem proeminentes. Dessa forma, a judicialização é facilitada por um conjunto interconectado de fatores que enfraquecem a proeminência de instituições e aumentam a oportunidade de intervenção judicial, propiciando um espaço ativo do judiciário na formulação de políticas (Tate; Vallinder, 1995).

Tate (1995) elenca diversas condições facilitadoras: democracia liberal, separação de poderes, política de direitos, uso dos tribunais por grupos de interesse, uso dos tribunais pela oposição política, instituições ineficazes, percepções das instituições políticas e a delegação deliberadas pelas instituições políticas.

Portanto, judicialização não ocorre no vácuo, sendo impulsionada por uma série de condições facilitadoras. A primeira é a existência de um regime democrático. Em ditaduras, independentemente de sua natureza, é improvável que juízes, mesmo que independentes, sejam convidados ou permitidos a aumentar sua participação na formulação de políticas importantes, ou que sejam tolerados processos decisórios que priorizem regras legalistas sobre a rápida obtenção de resultados desejados (Tate; Vallinder, 1995).

Uma condição frequentemente citada é a presença de uma estrutura de separação de poderes. Embora pareça plausível que um Estado constitucionalmente independente esteja bem-posicionado para se afirmar na formulação de políticas, o dever formal dos juízes em tais sistemas é interpretar, não criar as leis (Tate; Vallinder, 1995).

Uma condição considerada muito mais relevante para a judicialização da política é a existência de uma política de direitos. Essa política tem maior probabilidade de se desenvolver se puder ser fundamentada em uma Constituição que declare direitos fundamentais. Uma política de direitos cria um ambiente onde as disputas podem ser reformuladas em termos de direitos, permitindo que grupos de interesse e a oposição utilizem meios judiciais para atingir objetivos que não conseguiriam pelas vias políticas tradicionais (Tate; Vallinder, 1995).

Outras condições no ambiente político que promovem a judicialização incluem a existência de grupos de interesse e uma oposição política conscientes dos meios judiciais para atingir seus interesses, a presença de partidos fracos ou coalizões governamentais frágeis nas instituições majoritárias, levando a impasses políticos, e o apoio público inadequado, pelo menos em comparação com o judiciário, às instituições majoritárias. Esses fatores criam um vácuo ou uma oportunidade que o judiciário pode preencher (Tate; Vallinder, 1995).

As consequências da judicialização são variadas. A judicialização de fora pode ser vista como um mecanismo para manter o legislativo dentro dos limites constitucionais, mas também levanta preocupações democráticas ao substituir o julgamento majoritário (Tate; Vallinder, 1995). A judicialização de dentro nas arenas administrativas, por outro lado, é criticada por não necessariamente aumentar a participação, responsabilidade ou racionalidade legal. Pode, de fato, ser usada para legitimar políticas controversas, despolitizar conflitos ou até mesmo reduzir a responsabilidade, incentivando oficiais a adotar formalismos para se protegerem de desafios legais (Tate; Vallinder, 1995).

Outra visão teórica referenciada na literatura brasileira é percepção de Hirschl que desafia a ideia de que a expansão do poder judicial e a constitucionalização de direitos são motivadas primordialmente por um desejo normativo de proteger liberdades fundamentais contra maiorias insensíveis. Em vez disso, ele argumenta que esse processo é, em grande parte, um resultado de um jogo estratégico e interessado entre diferentes elites (Hirschl, 2007).

Hirschl identifica três grupos de elite principais que impulsionam essa “tese da preservação hegemônica”: elites políticas ameaçadas, elites econômicas e elites judiciais. Esses grupos formam coalizões para promover a transferência de poder das arenas de decisão majoritária (legislativos e executivos) para os tribunais (Hirschl, 2007).

As elites políticas ameaçadas buscam preservar ou aumentar sua hegemonia quando seus interesses e preferências políticas são desafiados ou marginalizados nas arenas democráticas majoritárias. Ao transferir o poder de elaboração de políticas para órgãos os tribunais constitucionais, eles podem isolar suas preferências das “vicissitudes da política democrática” (Hirschl, 2007).

As elites econômicas apoiam a judicialização porque veem a constitucionalização de certas liberdades econômicas (como direitos de propriedade ou liberdade de contrato) como um meio de promover a desregulamentação, reduzir gastos sociais e proteger seus interesses materiais contra a intervenção estatal (Hirschl, 2007).

Por fim, as elites judiciais também têm um interesse próprio na expansão do poder judicial. Elas buscam aumentar sua influência política e prestígio. A crescente interação e o “diálogo judicial” entre tribunais de diferentes países alimentam esse desejo por maior proeminência (Hirschl, 2007).

A tese da preservação hegemônica sugere que a constitucionalização, vista sob essa ótica, não é tanto a causa ou o reflexo de uma revolução progressista, mas sim um meio pelo qual as lutas sociopolíticas pré-existentes são travadas em um novo campo. A retórica dos direitos fundamentais é, nesse sentido, apropriada pelas elites para fortalecer sua própria posição (Hirschl, 2007).

Por outro lado, Hirschl reconhece que a judicialização tem um efeito transformador sobre o discurso político. Questões fundamentais de identidade coletiva e controvérsias políticas importantes são cada vez mais canalizadas para os tribunais, tornando-se questões judiciais (Hirschl, 2007).

Um ponto na análise de Hirschl é a relação dos tribunais com os outros ramos do governo. Ele argumenta que, na maioria das vezes, os tribunais não atuam como instituições contrárias à maioria no sentido forte que alguns teóricos sugerem (Hirschl, 2007). Essa conformidade, segundo Hirschl, é em parte uma consequência das condições de nomeação e da composição dos tribunais, que tendem a refletir as visões das elites. Assim, os tribunais, ao se tornarem atores políticos centrais, frequentemente reforçam o status quo político e econômico favorecido pelas elites que promoveram sua ascensão (Hirschl, 2007).

Em resumo, a judicialização da política, culminando na juristocracia, seria fundamentalmente impulsionada por uma estratégia política de elites interessadas em preservar sua hegemonia, isolando áreas cruciais de política da pressão democrática (Hirschl, 2007).

Essa perspectiva oferece uma lente crítica sobre a ascensão dos tribunais constitucionais e da revisão judicial em democracias ao redor do mundo, sugerindo que por trás da linguagem nobre dos direitos e princípios, podem existir motivações estratégicas menos altruístas.

Contudo, a judicialização também pode levar à politização do próprio judiciário. À medida que os tribunais se envolvem cada vez mais em questões políticas sensíveis, a nomeação de juízes pode se tornar mais explicitamente partidária. A falta de freios institucionais adequados pode levar a um corpo judicial que, apesar de gozar de grande independência formal, atua de maneira “efetivamente irresponsável” e autocentrada, concentrando poder sem prestar contas aos cidadãos (Hirschl, 2007).

Uma terceira análise referenciada sobre a judicialização da política extrai-se do trabalho de John Ferejohn (2002), pelo qual a fragmentation hypothesis surge como um pilar explicativo fundamental para a compreensão do crescente papel desempenhado pelas cortes, em especial as constitucionais, no processo de formulação de políticas e na dinâmica política de democracias modernas, O autor propõe que essa mudança significativa no equilíbrio de poder institucional, com uma migração de autoridade das instâncias tradicionalmente representativas para o Judiciário, não ocorre ao acaso, mas está intrinsecamente ligada a certas condições estruturais dentro do sistema político, sendo a fragmentação uma das mais proeminentes. Em essência, a hipótese postula que a capacidade e a disposição das cortes em exercerem uma autoridade independente na moldagem de políticas públicas aumentam consideravelmente em contextos em que as instituições políticas se tornam excessivamente fragmentadas, limitando a sua própria capacidade de legislar de forma eficaz e de resolver impasses decisórios.

I shall explore two general causes of judicialization. The first is an increasing fragmentation of power within the political branches which limits their capacity to legislate, or to be the place where policy is effectively formulated. I shall call this the fragmentation hypothesis. When the political branches cannot act, people seeking resolution to conflicts will tend to gravitate to institutions from which they can get solutions; courts (and associated legal processes) often offer such venues (Ferejohn, 2002, p. 55).

A fragmentação, nesse sentido, descreve uma condição em que os poderes executivo e legislativo se encontram divididos ou desorganizados a ponto de serem incapazes de tomar decisões coesas ou de levar a cabo projetos legislativos de forma eficaz. Ferejohn (2002) ilustra como essa fragmentação pode se manifestar em diferentes sistemas. No modelo americano, características institucionais como a separação de poderes entre o Congresso e a Presidência, eleitos separadamente, e o sistema eleitoral que incentiva a responsividade individual dos legisladores aos seus distritos em vez da disciplina partidária rígida, contribuem para que os períodos de partidos unificados e capazes de ação coordenada sejam raros e de curta duração. Essa estrutura tende a produzir circunstâncias de impasse e crise, limitando a capacidade da legislatura de agir de forma decisiva.

Ferejohn (2002) aponta os sistemas políticos europeus como um exemplo notável de fragmentação, combinando estruturas federais ou regionalizadas com instituições que exigem consensos amplos e sistemas partidários muitas vezes divididos. Essa fragmentação intrínseca limita a capacidade das instituições políticas de agirem de forma unificada e decisiva.

É precisamente nesse vácuo de capacidade decisória fragmentada que, segundo Ferejohn, reside a oportunidade para a ascensão do poder judicial. Quando o Legislativo e o Executivo se mostram incapazes de resolver impasses, de aprovar leis importantes ou de dar seguimento a projetos de política pública, os atores sociais e políticos que buscam a resolução de conflitos ou a implementação de determinadas agendas tendem a procurar outras vias institucionais que lhes ofereçam a possibilidade de obter soluções. As cortes, nesse cenário, emergem como instituições capazes de ação decisiva, mesmo quando as maiorias políticas estão paralisadas. O Judiciário, com sua estrutura e processos, pode, em certas circunstâncias, deliberar e tomar decisões que resolvem disputas ou estabelecem regras mesmo diante do impasse político (Ferejohn, 2002).

A hipótese da fragmentação, portanto, não apenas descreve uma causa para o aumento do poder judicial, mas também implica uma mudança fundamental na dinâmica de governança. Em um sistema onde a fragmentação política é alta, as cortes ganham um espaço de manobra maior para exercerem sua autoridade de forma independente, sem o risco constante de terem suas decisões revertidas ou controladas pelos ramos políticos paralisados (Ferejohn, 2002).

Se as cortes se tornam instituições capazes de tomar decisões politicamente consequentes e, em muitos casos, finais, os atores políticos reconhecem esse poder e passam a canalizar seus esforços para influenciar o Judiciário. Isso se manifesta de diversas formas, desde a tentativa de influenciar a composição das cortes através do processo de nomeação até o engajamento em litígios estratégicos e a busca por moldar o discurso jurídico e público em torno de questões constitucionais. A politização não implica necessariamente que os juízes ajam de forma abertamente partidária no sentido tradicional, mas que as decisões judiciais se tornam intrinsecamente ligadas a disputas políticas e ideológicas, pois determinam quem ganha e quem perde na ausência de ação política clara (Ferejohn, 2002).

Ferejohn (2002) contrasta a hipótese da fragmentação com rights hypothesis, que sugere que o empoderamento judicial pode ser explicado pelo crescente reconhecimento da capacidade das cortes em protegerem uma ampla gama de direitos importantes contra abusos políticos. Embora ele reconheça a relevância dessa segunda hipótese, a fragmentação é apresentada como uma explicação poderosa e mais geral, particularmente em sua capacidade de explicar a migração do poder decisório quando os ramos políticos não conseguem agir, independentemente da natureza da política em questão.

The second cause is more nebulous but perhaps more important. It is the sense that courts (at least certain courts) can be trusted to protect a wide range of important values against potential political abuse. Let us call this the rights hypothesis. The idea is that, as courts began to protect personal rights and liberties in addition to property rights, opposition to an expansive judicial role diminished (Ferejohn, 2002, p. 55).

A partir desses pontos que a literatura brasileira, embora dissonante, passa a investigar a judicialização da política. O senso comum tende a perceber a judicialização da política frequentemente como uma “anomalia pragmática”, que transgrede o princípio da separação de poderes no momento em que o poder judiciário supostamente ultrapassa a sua área de competência, usurpando ou impedindo o exercício das fundações dos poderes Executivo e Legislativo (Matos; Dettmam, 2023).

Felipe Franca observa a judicialização da política como uma expansão da influência política do Poder Judiciário e a transferência do poder de decisão, isto é, a possibilidade de órgãos do poder judiciário decidirem temas usualmente afetos ao legislativo, mas não aleatoriamente, mas sim decorrente de fatores históricos, econômicos e culturais que legitimaram um papel crescente para o judiciário. Nessa linha, a judicialização é dada como um fenômeno em que os demais poderes transferiram as tensões sociais para o judiciário, que passou a ser percebido como um ato legitimamente competente para decidir sobre política (Franca, 2020).

Sob essa perspectiva, a judicialização da política exerce um papel de processar a política pelo jurídico com a finalidade de assegurar a respeitabilidade dos direitos fundamentais e da própria Constituição, implicando na aproximação entre direito e política e, por consequência, na mitigação do conceito de legitimidade democrática baseada puramente no princípio da maioria (Pereira de Miranda; Gabriel Neto; Santos, 2024).

Outro estudo sobre judicialização da política importa em uma concepção institucional segunda a qual pode ser compreendida como um desdobramento da estratégia política, isto é, incorporação da atuação do judiciário como tática da oposição, instrumento de governo ou ainda como mecanismo para arbitrar conflitos (Palotti; Marona, 2024). A estrutura institucional permite a configuração de táticas empregadas por diversos atores políticos e a forma como as instituições estão organizadas e suas regras de funcionamento influenciam diretamente a decisão dos atores sobre se, quando e como utilizar o judiciário em suas disputas políticas (Palotti; Marona, 2024).

Portanto, a transferência de questões políticas para o processo judicial não é um fenômeno meramente jurídico, mas uma consequência de escolhas estratégias feitas pelos atores políticos que decidem acionar o judiciário em busca de seus objetivos visto que as regras e estruturas do sistema políticas criam as condições sob as quais a judicialização se torna uma opção viável e, inclusive, preferencial (Palotti; Marona, 2024). Por isso, o estudo da judicialização da política precisa integrar o poder judiciário como ator político relevante, posto que ignorar a capacidade dos atores políticos de usar a via judicial como parte de sua estratégia levaria a uma compreensão incompleta da dinâmica política contemporânea (Palotti; Marona, 2024).

Dessa forma, não basta observar que o judiciário está decidindo temas políticos, é preciso investigar por que esses temas chegam ao judiciário e como os atores políticos utilizam essa via para atingir seus objetivos (Palotti; Marona, 2024).

Essa visão estratégica adotada por Palotti e Marona (2024) está intrinsicamente ligada ao desenho institucional: controle de constitucionalidade forte, acesso facilitado ao judiciário por múltiplos legitimados e rigidez constitucional. Esse desenho institucional cria as “condições facilitadoras” que tornam viável a estratégia política que utiliza do judiciário como arena (Nunes, 2022; Palotti; Marona, 2024; Pereira de Miranda; Gabriel Neto; Santos, 2024).

O desenho institucional não apenas permite o acesso ao judiciário, mas também o posicionar como uma arena potencial para a resolução de disputas políticas que não encontram solução ou são estrategicamente desviadas das instâncias majoritárias (Araújo, 2022; Arruda, 2023; de Andrade Santos; de Moraes Ramos Filho, 2025; Medeiros, 2020; Molin, 2023; Palotti; Marona, 2024; Pereira, 2023; Ramos; Sena; Pinheiro, 2020; Rodrigues, 2022; Rodrigues; Costa, 2021; Teixeira, 2022; Zucolote de Oliveira; Alberto Pereira Ribeiro, 2022). A inércia ou ineficiência dos poderes legislativo e executivo em lidar com certas demandas ou temas controversos, combinada com as possibilidades de acionamento judicial previstas no desenho institucional, leva grupos de interesse a buscarem os tribunais (Carvalho, 2021; Cunha, 2021; Maia, 2020, p. 220; Ramos; Sena; Pinheiro, 2020; Sevilla, 2024; Teixeira, 2022).

O próprio judiciário, dentro desse arranjo institucional, passa a ser visto como um ator político (Prazak; Soares; Aires, 2020). O desenho institucional, com a força normativa da Constituição e a possibilidade de controle judicial de constitucionalidade, capacita o judiciário a intervir e influenciar a produção de políticas públicas e os processos decisórios dos demais poderes (Maia Goltzman; Pereira Ramos Neto, 2023; Prazak; Soares; Aires, 2020; Teixeira, 2022; Zucolote de Oliveira; Alberto Pereira Ribeiro, 2022).

Matthew Taylor e Luciano da Ros (2008), examinando como os diferentes atores políticos e grupos de interesse utilizam o instrumento das ADI perante o STF e quais resultados obtêm, verificam que o design institucional pode potenciar o processo de judicialização. A existência de prerrogativas que garantem a independência do Poder Judiciário, combinadas com a possibilidade de revisão judicial, a fragmentação política e sistemas eleitorais personalizados com elevadas taxas de risco para a manutenção no poder, são fatores que incentivam a judicialização.

Devido a polissemia da judicialização da política, alguns autores buscaram reduzir o conceito a fim de estudá-lo a partir de suas dimensões. Há dois estudos particularmente interessantes sobre a multidimensionalidade da judicialização da política.

Nelson Matos e Deborah Dettmam (2023) propõe a partir de Tate e Vallinder, Hirschl e Lowenstein e inspirado nas constatações de Ernani Carvalho e Marjorie Marona, observar a judicialização da política a partir de três dimensões:

Dimensões Aspectos Especificidades
1ª Dimensão (Judicialização da política pura) Última instância judicial (ou instância de cassação de decisões judiciais) Conflitos entre os órgãos superiores do Estado
Arbitragem de conflitos políticos Conflitos constitucionais
Legislação suplementar Súmulas e enunciados
Mandado de injunção
Regulamentos (judiciais)
Fiscalização eleitoral
2ª Dimensão (Judicialização da política ordinária) Novo perfil do judiciário Inflação legislativa e direitos positivados
Modelos de interpretação
3ª Dimensão (Judicialização imprópria) Relação com o executivo ordinário (controle judicial da administração pública) Modelos de relação jurídica processual
Demandas repetitivas
Livre convencimento do juiz
Ordens para o Estado se abster
Ordens para o Estado fazer
Relação com o executivo ordinário no exercício do poder regulamentar (determinação de políticas públicas) Proibição de políticas públicas
Determinação de políticas públicas
Relações com a legislação ordinária Não aplicação
Interpretação livre (criativa)

No entanto, os autores verificam que a polissemia da judicialização da política traduz-se em uma sobreposição de conceitos que geram efeitos que não necessariamente correspondem à judicialização da política. Portanto, sugerem que o melhor sentido dado à judicialização da política é a dimensão que estrutura esse conceito na noção de transferência do poder de decisão sobre políticas públicas e temas políticos controversos para o judiciário (Matos; Dettmam, 2023).

Noutra vertente, Leandro Ribeiro e Diego Arguelhes (2019) relatam que a produção científica brasileira sobre judicialização da política focou apenas no estudo das ações diretas de inconstitucionalidade, não compreendendo todo o fenômeno.

Os autores relatam que, tradicionalmente, a literatura nacional debruçou-se sobre este tema, definindo a judicialização da política, em sua acepção mais direta, como a transferência de decisões normativas das esferas majoritárias do poder político, como o Legislativo e o Executivo, para a órbita do Poder Judiciário, com especial destaque para o STF. A justificativa para essa abordagem privilegiada residia, em grande medida, no fato de as ADI representarem um instrumento processual concebido pela Constituição para o controle abstrato de constitucionalidade, sendo acessíveis a um conjunto específico e relevante de atores e capazes de gerar decisões com efeitos gerais e vinculantes (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

Apesar da importância inegável dos estudos centrados nas ADI para mapear a inserção do STF no processo político decisório, a concentração excessiva nesse tipo processual impõe limites à apreensão integral da complexidade do fenômeno da judicialização da política. Essa perspectiva mais restrita tende a focar primariamente em uma dimensão específica da atuação do tribunal, negligenciando outras formas pelas quais o STF pode ser acionado e influenciar a dinâmica política (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

Para os autores, a própria definição seminal de judicialização da política, proposta por Tate e Vallinder, já apontava para duas vertentes distintas: uma, mais “dramática”, que envolve a transferência de decisões normativas para o judiciário, e outra, menos “dramática”, relativa à incorporação de métodos judiciais em outros ramos do governo. O foco nas ADI alinha-se à primeira dimensão, frequentemente interpretada no Brasil como o recurso de atores políticos, especialmente aqueles derrotados nas arenas majoritárias (Legislativo e Executivo), que buscam o STF como uma arena de veto para contestar ou impedir a implementação de políticas ou leis (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

Além disso, e talvez de forma mais surpreendente para a visão tradicional, a judicialização pode servir como um “instrumento de governo”, utilizado por atores governistas para superar impasses dentro do próprio processo legislativo ou para anular normas que, por alguma razão, tornaram-se indesejadas pelo governo ou por sua base de apoio. Essas perspectivas alternativas demonstram que o recurso ao STF não é um monopólio da oposição e que a dinâmica da judicialização é mais complexa do que uma simples dicotomia (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

Para construir um mapa teórico mais abrangente da judicialização da política, é essencial integrar elementos que vão além do foco nas ADIs e na atuação contramajoritária clássica. A complexidade do fenômeno reside na combinação de diferentes fatores, incluindo o desenho institucional do sistema político e do Poder Judiciário, a dinâmica política da conjuntura e as motivações dos diversos atores relevantes para acionar o tribunal.

Contudo, o arcabouço institucional por si só não explica a variação na intensidade e nas formas da judicialização. A motivação dos atores para transferir decisões para o Judiciário é um fator determinante, e essa motivação é intrinsecamente ligada à dinâmica política do momento, sendo, em grande medida, contingente. A decisão de judicializar é uma ação estratégica que emerge do jogo político em curso, moldada por cálculos sobre a correlação de forças entre os atores, a distância entre suas preferências sobre um determinado tema, o grau de coesão interna de atores coletivos e a saliência política da questão em debate. Em síntese, uma parte substancial da variação no que é judicializado, por quem, como, quando e em que intensidade, é explicada por elementos que dependem da dinâmica política específica de cada momento (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

Além da consideração conjunta do desenho institucional e da dinâmica política conjuntural, um mapa teórico mais completo da judicialização exige incorporar a variação que o próprio fenômeno pode assumir em função da combinação entre as diferentes formas de acesso ao STF e as características do processo decisório interno da corte (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

A análise que se restringe às ADIs como principal, ou único, indicador empírico da judicialização da política ignora que o desenho institucional brasileiro permite que uma multiplicidade de atores, tanto coletivos quanto individuais, acesse o STF por meio de diversas classes processuais e em diferentes etapas do processo decisório. Essa diversidade de vias de acesso amplia consideravelmente o leque de possibilidades de intervenção judicial na política. Incorporar de maneira sistemática a análise de outras classes processuais, além das ADIs, como mandados de segurança, mandados de injunção, arguições de preceito fundamental, é para uma descrição mais precisa e uma mensuração mais completa do fenômeno (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

Em suma, a judicialização da política é um fenômeno multifacetado que se manifesta de maneiras variadas, impulsionado pela interação complexa entre o desenho institucional, a dinâmica política conjuntural e as diversas motivações dos atores. Pode ser promovida tanto por atores da oposição quanto por membros da base governista. Os atores podem agir de forma coletiva, por meio de partidos e associações, ou individualmente. A judicialização pode incidir sobre o conteúdo de uma política pública, visando vetá-la, ou sobre o próprio processo político de negociação e barganha, buscando sinalizar preferências, arbitrar conflitos ou obstruir o trâmite legislativo (Ribeiro; Arguelhes, 2019).

3.1 Constitucionalismo democrático

Se por um lado, o constitucionalismo prega que o poder político está limitado à Constituição que cria as condições para o exercício legítimo do poder em um documento capaz de o institucionalizar, organizar e limitar, por outro lado, democracia pode ser originalmente concebida (dentro vários conceitos) como governo do povo no exercício da soberania popular (Rodrigues; Costa, 2021; Silva, 2021).

A união dessas duas vertentes culmina no constitucionalismo democrático. O Estado Democrático de Direito é a síntese histórica da mescla entre constitucionalismo e democracia (Neves, 2021). Nesse arranjo institucional, a Constituição moderna enquanto acoplamento estrutural entre política e direito, sempre possui duas dimensões: constituição como politização do direito e a constituição como juridificação da política (Alves, 2024).

No entanto, a relação entre constitucionalismo e democracia é marcada por pontos simultâneos de interação e distensão, gerando um tensionamento inerente. Como anota Carneiro (2020), o termo “democracia constitucional” pode parecer um oximoro ou uma tautologia. Por um lado, constitucionalismo (poder contido e dividido) e democracia (poder unificado e exercício irrestrito) podem parecer opostos; por outro lado, as constituições podem ser apresentadas como as regras do jogo democrático. Perovano e Souza (2025) endossam essa complexidade e paradoxo, onde a democracia significa a vontade absoluta do povo ou das maiorias populares, e o constitucionalismo figura a limitação dessa vontade. Este último funciona como um guardião da forma e do conteúdo constitucional, protegendo os indivíduos contra a noção compreensiva de bem-estar da comunidade política.

Essa tensão se manifesta de forma aguda na chamada “dificuldade contramajoritária”. A Constituição, ao dispor de um controle jurisdicional de constitucionalidade (como na brasileira), autoriza autoridades judiciais não eleitas a bloquearem decisões tomadas pelos representantes eleitos dos cidadãos. Isso gera uma tensão entre o constitucionalismo, que privilegia a proteção de direitos, e a democracia, que privilegia a regra da maioria (Carneiro, 2020). Os direitos fundamentais, em particular, funcionam como limites à vontade da maioria, servindo como um “escudo protetor”. Sua fundamentação reside no fato de que a vontade da maioria não pode ser absoluta, pois as decisões políticas não têm o poder de violar as normas constitucionais; acima da vontade da maioria está a Constituição (Neves, 2021).

Apesar dessa tensão, diversas perspectivas buscam conciliar esses polos. Conforme Campo (2023) e Conti (2023), com base em Dworkin, a democracia, entendida em uma construção interpretativa histórica, é naturalmente uma democracia constitucional. A democracia constitucional consiste em um regime de governo sujeito a condições de igual consideração por todos os cidadãos. Rejeita-se a ideia de que o objetivo da democracia se reduza a um procedimento onde as decisões coletivas são apenas aquelas favoráveis à maioria, enfatizando que a concepção constitucional requer procedimentos majoritários em virtude de uma preocupação com a igualdade dos cidadãos. Dessa forma, certas condições normativas associadas ao constitucionalismo são incorporadas no conceito de democracia, o que eliminaria a tensão.

No Estado Constitucional Democrático, a Constituição não se limita a ser um documento com normas superiores, mas é um mecanismo que pretende habilitar a democracia, regulamentar o exercício do poder e estruturar parâmetros de justiça que devem regular as relações sociais. A Constituição se torna a salvaguarda da própria sociedade, limitando a soberania do Estado. Em verdade, como pondera Neves (2021), a supremacia da Constituição apresenta-se não apenas como uma exigência do discurso científico, mas também como uma necessidade democrática. Como Lei Fundamental, elaborada para ser uma exigência do e garantia de sua autodeterminação, ela se manifesta em interação com a realidade social.

Cunha (2021) constata que o Estado Democrático de Direito representa a resultante da evolução histórica que impôs limites ao poder do Estado, garantiu os direitos individuais e coletivos fundamentais, e delimitou a Constituição como baliza a não ser ultrapassada. O Estado Democrático de Direito deve, sobretudo, oferecer a garantia de exercício do poder estatal com base no direito, não no arbítrio ou em vontades pessoais. Este conceito confunde-se com a razão de ser de uma Constituição: regular o exercício do poder e garantir direitos fundamentais.

A relação de complementariedade entre a legitimidade democrática eletiva (representantes eleitos) e a legitimidade democrática constitucional (salvaguarda da Constituição, concretização de direitos fundamentais), ambas seriam faces da mesma moeda, representando a soberania popular e o jogo democrático sob vieses diferentes, mas com idêntica legitimidade constitucional. A legitimidade dos tribunais constitucionais, por exemplo, pode ser vista como legitimidade reflexiva, assegurando os direitos fundamentais de todos, inclusive das minorias. Dessa forma, A preocupação com o indivíduo e a dignidade humana são imprescindíveis para o estabelecimento democrático e a preservação dos direitos fundamentais (Alves; Costa; Matos, 2024).

Nessa toada, o paradigma procedimentalista da democracia e do direito considera a Constituição como interpretação e configuração de um sistema de direitos que implementa o nexo interno entre democracia e Estado de Direito. Nesse sentido, a jurisdição constitucional, ao garantir as condições procedimentais de criação jurídica (o devido processo legislativo), não usurpa competências, mas exerce sua função precípua para o Estado Democrático de Direito e a democracia constitucional (Carvalho, 2021).

A revisão judicial no constitucionalismo democrático se justifica a partir da função tripla do tribunal proposta por Alexander Bickel (1986): verificar (check), legitimar (legitimate) ou não fazer nenhuma das duas coisas. O autor enfatiza fortemente a função legitimadora, vendo-a como um subproduto inevitável da capacidade do Tribunal de verificar a constitucionalidade. Ou seja, ao passo que o Tribunal pode derrubar uma lei como inconstitucional (verificar), ele também pode validar uma ação legislativa ou executiva ao considerá-la dentro dos poderes concedidos pela Constituição e não violando limitações constitucionais (Bickel, 1986).

Para Bickel, isso não é um “elogio” (compliment), mas uma “apreciação significativa” (significant appreciation) que confere prestígio e solidez a medidas que podem ter sido provisórias (tentative) ou perto do abandono (on the verge of abandonment). No entanto, Bickel argumenta que, embora não seja um elogio, tampouco é uma apreciação inconsequente (Bickel, 1986).

É, na verdade, uma intervenção significativa no processo político. O prestígio do Tribunal e o “encanto que ele projeta como símbolo” permitem que ele consolide e fortaleça medidas que podem ter sido concebidas de forma provisória ou que estavam prestes a ser abandonadas na execução. Independentemente da intenção do Tribunal, a legitimação por ele pode gerar consentimento e conferir permanência a essas medidas.

Para Bickel, o ato de chamar uma decisão de “constitucional”, ou pelo menos não a chamar de outra coisa, é porque assim invocam o instrumento último de seu poder. O Executivo e o Legislativo, ao contrário do Tribunal, não possuem a “espada” ou a “balança”; suas forças derivam da busca da sociedade pelo primado do princípio, sua prontidão em receber o princípio do Tribunal e sua forte inclinação, formada pelo hábito, em aceitar, concordar e harmonizar, obedecer (Bickel, 1986).

A relação entre o Tribunal (especialmente a Suprema Corte) e os outros ramos do governo (Legislativo e Executivo), bem como a sociedade em geral, não é vista como uma compartimentalização rígida das funções. Em vez disso, o autor descreve essa relação como um “envolvimento uns com os outros” e uma “intimidade”, mesmo que essa intimidade possa ser tensa, como a de “criaturas trancadas em combate” (Bickel, 1986).

As transformações do constitucionalismo democrático que enfatizaram a busca judicial pela solução de conflitos políticos transformaram o STF na “rainha do jogo de xadres”, segundo a visão de Leon Barbosa e Ernani Carvalho (Barbosa; Carvalho, 2020). O tribunal deixou de ser uma peça secundária, por vezes vista como um desconhecido em certos períodos históricos, para se tornar um elemento fundamental no tabuleiro político nacional.

A razão subjacente a esse empoderamento, explorada no estudo de Barbosa e Carvalho, reside em diversos fatores, destacando-se, de maneira proeminente, a dinâmica política e a fragmentação partidária. Quanto maior a fragmentação político-partidária, maior é o empoderamento institucional do STF. Essa fragmentação, especialmente em períodos democráticos, cria um cenário de incerteza e impasses nas arenas majoritárias (Executivo e Legislativo), tornando o Judiciário, e em particular o STF, uma arena atrativa para a resolução de conflitos e a superação de impasses (Barbosa; Carvalho, 2020).

Ademais, o aumento do poder do STF não foi um fenômeno acidental ou puramente endógeno. As reformas que concederam ao tribunal suas prerrogativas e competências atuais se deram majoritariamente por meio de emendas constitucionais, muitas das quais foram de autoria do Poder Executivo. Isso sugere que não apenas a oposição utiliza o STF como “arena de veto” ou “ator contramajoritário”, mas também atores “governistas” ou membros da própria coalizão acionam o tribunal para arbitrar conflitos internos, superar impasses legislativos ou coordenar ações. Essa mobilização estratégica por diversos atores políticos, sejam de oposição ou de governo, contribui para a centralidade do STF no “jogo” e reforça sua imagem como a “rainha” capaz de influenciar múltiplos aspectos da política (Barbosa; Carvalho, 2020).

O fenômeno da judicialização da política, em seu sentido “mais dramático” de transferência de decisões das arenas majoritárias para o Judiciário, conforme definido na literatura (Ferejohn, 2002), é o processo pelo qual o STF se consolida nessa posição. A capacidade do tribunal de intervir não apenas no controle abstrato de constitucionalidade, mas também em outras classes processuais e a possibilidade de decisões individuais de ministros terem grande impacto institucional, tornam sua atuação multifacetada e influente (Barbosa; Carvalho, 2020).

Portanto, a caracterização do STF como a rainha do jogo de xadrez decorre da análise que aponta o tribunal como uma instituição cujo poder institucional tem crescido significativamente ao longo do tempo, impulsionado pela fragmentação partidária e pelas ações estratégicas de atores políticos (incluindo o Executivo), tornando-o um ator central e poderoso, capaz de intervir de forma decisiva em impasses políticos e no processo decisório nacional, preenchendo lacunas e exercendo um papel que, em contextos democráticos com forte fragmentação, transcende a função tradicionalmente esperada do Judiciário (Barbosa; Carvalho, 2020).

Por fim, embora a constitucionalização do direito tenha acentuado o papel do poder judiciário e o içado à rainha do jogo de xadrez, essa não é a única peça do jogo. Questiona-se, por fim, o que a literatura indica como referência à relação entre as “criaturas trancadas em combate”.

3.2 Judicialização da política no constitucionalismo democrático: legitimação pelo diálogo institucional

Se há a transferência da decisão política ao judiciário, há diálogo no processo? A legitimidade democrática da decisão política judicial é posta em xeque quando a se exige que as decisões políticas sejam definidas pelo princípio da maioria. A transferência voluntária do fórum de decisão, por sua vez, exige igualmente que se transfira o diálogo permanente sobre a política.

O diálogo institucional surge como um modelo de estruturação das instituições que possibilita a comunicação entre o legislativo e o judiciário, de modo que seja possível rediscutir decisões proferidas pelo judiciário ou, ainda, participar do processo de decisão judicial (Miranda; Gabriel Neto; Santos, 2024). Busca-se a partir do diálogo contribuir para a diminuição de entraves na tomada de decisões de significativo impacto social, enfatizando que se alcance um equilíbrio de forças sem que o controle judicial de constitucionalidade se transforme em uma barreira intransponível (Miranda; Gabriel Neto; Santos, 2024). Dessa forma, busca-se relativizar a perspectiva de que uma instituição detém a última palavra, permitindo que dentro do próprio processo judicial as partes interessadas, sejam os legitimados, amicus curiae ou intervenientes obrigatórios, bem como a própria sociedade civil em audiência pública, participem da decisão (Miranda; Gabriel Neto; Santos, 2024).

Esses mecanismos de diálogos institucionais são instrumentos que permitem a interação e a contribuição de atores externos ao núcleo do processo para a formação da decisão judicial, com o objetivo de ampliar o debate e a base informacional do judiciário em temas controversos, muito embora esses instrumentos, por serem endoprocessuais, não são plenamente capazes de promover o engajamento, interação e equilíbrio necessário entre poderes (Miranda; Gabriel Neto; Santos, 2024).

Afinal, sobre determinada perspectiva, a judicialização da política não é necessariamente uma anomalia da separação de poderes, mas um fenômeno que diante do privilégio do discurso democrático que valoriza instâncias representativas e autogoverno popular, criam uma tensão entre judicialização e democracia. E, nessa perspectiva, judicialização da política não precisa necessariamente ser um contraponto à separação dos poderes, mas uma intrincada relação da prática democrática contemporânea (Matos; Dettmam, 2023).

Bickel (1986) sugere que o Tribunal se engaja em um “colóquio socrático” com as outras instituições de governo. Essa comunicação nem sempre é formal ou mesmo política, mas é uma parte essencial do sistema.

As virtudes passivas (passive virtues), que são as técnicas e dispositivos que o Tribunal utiliza para evitar o julgamento (staying the Court’s hand) em questões constitucionais, desempenham um papel na iniciação e facilitação desse colóquio. Essas técnicas incluem, por exemplo, a recusa de ouvir casos, a doutrina da vaguedade (vagueness), a doutrina da ripeness (questões não maduras para decisão), a doutrina da questão política (political question) e a dessuetude (não aplicação de leis antigas em desuso) (Bickel, 1986).

Ao abster-se de decidir ou ao usar essas técnicas de forma estratégica, o Tribunal pode convidar as instituições políticas a se aproximarem da bancada, buscar que essas instituições sejam instadas a esclarecer seus propósitos deliberados e, assim, talvez a reduzir a questão. O Tribunal, ao evitar um julgamento final, pode estar buscando suscitar as respostas corretas para certas questões prudenciais ou abrir um colóquio, propondo a questão, não respondendo-a para eles (Bickel, 1986).

Esse colóquio serve a vários propósitos importantes. Ajuda a moldar e reduzir a questão constitucional ao longo do tempo, tornando a resposta mais familiar, se não óbvia (rendered the answer familiar if not obvious) através de uma conversação contínua com as instituições políticas e com a sociedade em geral. Permite que o Tribunal exerça sua função de professor para a cidadania (teacher to the citizenry), explicando e defendendo os princípios constitucionais, mesmo quando não pode impor uma solução final de forma coercitiva (Bickel, 1986).

Tradicionalmente, a dificuldade contramajoritária surge do fato de que um órgão não eleito, como uma corte constitucional, pode invalidar decisões tomadas por instituições representativas, que, em tese, expressam a vontade da maioria. Essa ação de veto por parte de juízes com mandato vitalício, por exemplo, vai de encontro ao princípio do governo pela maioria, um pilar fundamental da democracia. O questionamento reside em como justificar normativamente que a decisão de poucos, sem vínculo direto com a soberania popular, possa prevalecer sobre a decisão de muitos, especialmente quando essa decisão judicial bloqueia a implementação de políticas ou leis desejadas pelas maiorias legislativas. A dificuldade, nesse sentido, reside em conciliar a revisão judicial com o ideal democrático de autogoverno.

Entretanto, John Ferejohn e Pasquale Pasquino (2010) propõe uma releitura fundamental dessa “dificuldade”, transformando-a em uma “oportunidade”. A essência dessa oportunidade reside na capacidade da ação contramajoritária da corte atuar como um catalisador para a deliberação pública e institucional. Ao bloquear ou questionar uma decisão majoritária, a corte força os demais atores políticos – representantes eleitos, partidos, grupos de interesse e a própria população – a revisitar o tema, a repensar os argumentos, a debater e a deliberar novamente sobre a questão. Em vez de simplesmente impor sua própria visão constitucional, a corte utiliza seu poder para iniciar ou reorientar um processo de discussão mais amplo e aprofundado na sociedade (Ferejohn; Pasquino, 2010).

Esse diálogo institucional envolve a apresentação de argumentos, mesmo que baseados em premissas divergentes, e a busca por consensos ou compromissos que possam atrair o apoio de setores menos representados da população. O papel da corte, nesse contexto, é não apenas por iniciar o debate ao bloquear a maioria, mas também por moldá-lo. A corte, ao apresentar suas razões fundamentadas na interpretação constitucional, delimita os termos sob os quais os argumentos públicos são feitos e julgados, definindo, em muitos casos, a agenda e a estrutura da discussão subsequente (Ferejohn; Pasquino, 2010).

Este diálogo não é unidirecional; ele pressupõe que tanto a corte quanto a opinião pública podem evoluir e ter suas visões influenciadas ao longo do tempo. A convergência de opiniões entre a corte e o público pode resultar não apenas da corte cedendo à pressão popular, mas também do público aceitando as razões da corte ou, mais provável, de um processo de coevolução deliberativa através desse diálogo. O diálogo constitucional, portanto, envolve a corte, os representantes eleitos e a opinião pública, cada um com sua própria forma de poder normativo e capacidade de influência (Ferejohn; Pasquino, 2010).

Nessa dinâmica, a corte constitucional atua como um ator distintivo no processo deliberativo. Assim, quando outras instituições falham em se guiar pela razão pública ao lidar com questões de direitos fundamentais, a corte pode intervir, não apenas para corrigir o erro, mas para forçar uma redeliberação que, espera-se, seja mais alinhada com os princípios constitucionais e a razão pública (Ferejohn; Pasquino, 2010).

Em suma, a dificuldade contramajoritária, entendida como o poder de um órgão não eleito de invalidar decisões majoritárias, é vista como uma oportunidade porque força a redeliberação e estimula um diálogo entre a corte, os representantes e o público. Portanto, esse diálogo, embora complexo e imperfeito na prática da democracia moderna, permite que questões constitucionais e de direitos fundamentais sejam debatidas de forma mais ampla e aprofundada do que ocorreriam em um sistema puramente majoritário, contribuindo para a evolução das opiniões e, potencialmente, para uma convergência entre as visões judicial e popular ao longo do tempo. Essa a ação contramajoritária, ao invés de ser um obstáculo à democracia, pode, por meio da indução de um diálogo constitucional robusto, torná-la mais deliberativa e, em última instância, mais responsiva e reflexiva em relação aos seus próprios fundamentos e valores (Ferejohn; Pasquino, 2010).

Superada a análise teórico, este capítulo demonstrou que a transferência de decisões das arenas tradicionais da política para as cortes constitucionais não é uma anomalia, mas um fenômeno estrutural das democracias contemporâneas, um campo de ação estratégica para atores políticos e um catalisador para novas formas de diálogo institucional.

Nesse sentido, o Supremo Tribunal Federal (STF) emerge como um laboratório privilegiado para tal análise. A intensidade com que questões políticas são submetidas a um veredito sobre sua compatibilidade com a Constituição pode ser aferida pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Investigar-se-ão os padrões de seu ajuizamento, os temas veiculados e, crucialmente, os fatores que determinam a longevidade de sua tramitação, desvelando o papel do STF não apenas como árbitro, mas como gestor estratégico do tempo e do ritmo do conflito político.