6  Conclusão

Ao final desta jornada, que se propôs a compreender como a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é operacionalizada no campo do processo no Supremo Tribunal Federal (STF) para judicializar a política, emerge um retrato complexo e multifacetado da democracia brasileira contemporânea. A trajetória metodológica, que partiu de uma abordagem jurimétrica multimétodo para desvelar as estruturas discursivas das decisões judiciais, permitiu transcender a análise dogmática tradicional. O que se revela não é um Judiciário que simplesmente avança sobre a política, mas um ecossistema dinâmico de interação estratégica, no qual a ADPF funciona como um sismógrafo das tensões institucionais, e o STF, como um árbitro seletivo e poderoso, que gerencia ativamente seu papel no epicentro dos conflitos nacionais.

A análise quantitativa apresentada no Capítulo 4 forneceu a base para o diagnóstico do fenômeno. Constatou-se um crescimento exponencial no ajuizamento de ADPFs na última década, com picos que coincidem com os momentos de maior estresse político e institucional do país, como o impeachment e a pandemia de COVID-19. Esta “corrida ao Judiciário” não é aleatória, mas um sintoma da incapacidade do sistema político representativo de processar seus próprios conflitos. A investigação sobre a longevidade dos processos desvelou dinâmicas contraintuitivas: o “paradoxo do rito abreviado”, que, concebido para acelerar, na prática está associado a um tempo de tramitação mais longo, e a existência de uma “triagem judicial”. O tempo, portanto, revelou-se não como um dado burocrático, mas como uma variável política, uma ferramenta de judicial statecraft.

O Capítulo 5 aprofundou a análise ao investigar quem são os protagonistas dessa judicialização e quais são suas motivações. A pesquisa confirmou a “partidarização” do controle de constitucionalidade, com os partidos políticos, consolidando-se como os litigantes mais assíduos. Em contraste, o “silêncio judicial” de partidos do chamado “Centrão” e dos ocupantes do poder Executivo e Legislativo demonstrou que a ADPF é a ferramenta preferencial dos outsiders do poder transacional.

Diante desses achados, o problema de pesquisa desta dissertação pode ser respondido de forma assertiva: a ADPF é operacionalizada de maneira dual. Para os atores políticos ela é um recurso estratégico vital, utilizado não apenas para buscar um veto judicial a políticas indesejadas, mas também para pautar o debate público, obter visibilidade midiática e exercer oposição quando os canais legislativos se mostram bloqueados. Para o Supremo Tribunal Federal, a ADPF é operacionalizada por meio de uma sofisticada gestão de sua própria jurisdição. A Corte não é uma receptora passiva de demandas, mas um gatekeeper ativo, que utiliza um arsenal de ferramentas processuais e discursivas para filtrar o intenso fluxo de judicialização, escolhendo seletivamente em quais batalhas políticas irá intervir e preservando, assim, seu capital institucional e sua capacidade decisória para os casos que considera de maior relevância.

A primeira hipótese central da pesquisa – de que o tempo de tramitação de uma ADPF é uma variável eminentemente política e estratégica – foi amplamente corroborada. A análise de sobrevivência demonstrou que a identidade do ministro relator possui um impacto estatisticamente significativo na celeridade processual, indicando que estilos de judicatura e gestões de gabinete individuais são fatores determinantes. Mais revelador ainda foi o “paradoxo do rito abreviado”, que, ao invés de acelerar, está associado a uma maior longevidade dos processos. Este achado sugere que o rito é empregado estrategicamente para gerir casos de alta complexidade ou sensibilidade política. O tempo, portanto, deixa de ser um mero indicador de eficiência para se tornar um recurso de poder, uma ferramenta utilizada para absorver pressões, construir consensos e modular o impacto das decisões.

A segunda hipótese fundamental – de que a litigância via ADPF é marcada por uma profunda assimetria, provocando uma resposta de gatekeeping por parte do Tribunal – também foi confirmada. A análise dos proponentes revelou uma concentração massiva de ações em um grupo específico de partidos de oposição, enquanto atores com acesso privilegiado ao poder transacional evitam o confronto judicial. Em resposta a essa avalanche de demandas, o STF desenvolveu uma estratégia de contenção. A análise das decisões “sem resolução de mérito” demonstrou que o princípio da subsidiariedade é a principal ferramenta deste filtro, funcionando como um muro processual que barra a maioria das tentativas de judicialização. Este mecanismo de “triagem judicial” demonstra um STF que atua como um árbitro seletivo, escolhendo ativamente quais conflitos políticos serão elevados ao status de controvérsia constitucional.

Os resultados dialogam diretamente com o arcabouço teórico mobilizado no Capítulo 3. A intensa utilização da ADPF pela oposição política e por grupos da sociedade civil, em um contexto de crise e paralisia decisória, é uma manifestação da “hipótese da fragmentação” de John Ferejohn, segundo a qual o vácuo de poder deixado pelas instituições políticas fragmentadas é preenchido pelo Judiciário. Da mesma forma, o fenômeno se alinha perfeitamente às “condições facilitadoras” da judicialização descritas por Tate e Vallinder, como a existência de uma política de direitos, o uso dos tribunais pela oposição e a percepção de ineficácia das arenas majoritárias. O STF, nesse cenário, consolida-se como a “rainha do jogo de xadrez”, uma instituição cuja centralidade é causa e consequência dos impasses da política brasileira.

A pesquisa também permite um diálogo com a “tese da preservação hegemônica” de Ran Hirschl. Embora os dados mostrem que os principais impulsionadores da litigância são atores de oposição, e não as elites no poder, a resposta do STF pode ser interpretada sob uma ótica de estabilização sistêmica. Ao atuar como um gatekeeper seletivo, que filtra a maior parte das demandas e intervém de forma pontual e estratégica, principalmente para definir as regras da high politics e garantir a funcionalidade mínima do Estado, o Tribunal exerce uma função de moderação de conflitos que, em última instância, impede uma ruptura institucional. A Corte não atua para isolar as preferências de uma elite específica, mas para gerenciar as disputas de uma forma que preserve a integridade do próprio sistema político-constitucional, uma forma mais complexa de manutenção da ordem vigente.

Finalmente, os achados desta dissertação lançam uma nova luz sobre o debate do constitucionalismo democrático e dos diálogos institucionais. A atuação do STF, com seu poderoso aparato de filtros e sua gestão estratégica do tempo, pode ser compreendida não apenas como um ato de autocontenção, mas como uma forma de iniciar o que Alexander Bickel chamou de “colóquio socrático”. Ao indeferir uma ação com base na subsidiariedade, o Tribunal não está simplesmente fechando uma porta; ele está sinalizando aos atores políticos que a solução para aquele conflito deve, primeiramente, ser buscada em outras arenas, forçando a deliberação e a negociação. A dificuldade contramajoritária, na visão de Ferejohn e Pasquino, transforma-se em uma “oportunidade” precisamente neste ponto: a intervenção judicial, mesmo que pela recusa em intervir, pode catalisar um debate público mais robusto e aprofundado.

Em síntese, esta dissertação demonstrou que a operacionalização da ADPF no Brasil contemporâneo é o epicentro de um complexo diálogo estratégico entre o campo político e o campo jurídico. Os partidos instrumentalizam a jurisdição constitucional como um recurso político vital, enquanto o STF responde com uma calculada seletividade, gerenciando o conflito para preservar seu capital e a estabilidade do sistema. O resultado é um modelo de jurisdição constitucional que não é nem puramente ativista, nem passivamente contido, mas sim o de um protagonista indispensável e um árbitro seletivo dos conflitos mais agudos que a democracia representativa brasileira, em sua atual configuração, se mostra incapaz de solucionar por si só. A compreensão dessa dinâmica é fundamental para o entendimento do poder, do direito e da própria governança no Brasil do século XXI.